Na segunda-feira de manhã, Murilo se enfaixou.
Deu a volta pela testa, firmou a ponta da atadura com um pedaço de esparadrapo. Diante do espelho, girando lentamente a atadura, cruzou o alto da cabeça e continuou. Quando já parecia vítima de lobotomia, desceu em direção aos olhos. Sem prejudicar a visão, cruzou a testa, em ligeiras diagonais, até cobrir cada sobrancelha. Continuou descendo, cobriu o nariz e as bochechas, fixou a abertura das narinas com esparadrapo. Na boca, pôs uma falsa cobertura, que podia ser arregaçada ao toque mínimo de um dedo. Apertou a faixa na área do pescoço, fez novo arremate de esparadrapo na base. Respirando fundo, revisou o trabalho. Com paciência, repetiu todo o processo, uma segunda e cuidadosa camada.
Analisou as tensões. A dele, até que razoável... A da bandagem, no ponto. Olhou firmemente o resultado no espelho. Tudo bem ajustado, superfície praticamente lisa, nada de pontas destoantes. Para quem não era enfermeiro, trabalho quase profissional... A atadura bege tinha a vantagem de parecer natural, cor-da-pele, para ele que era branquelo. Satisfeito, por um instante quase sorriu. Mas evitou forçar...
A ida ao centro da cidade confirmou a qualidade do trabalho. Precavido, escolheu, para evitar contrastes, uma roupa clara. A cabeça enfaixada (talvez pela falta de sangue ou de qualquer outra aparente substância gelatinosa ou gosmenta) não provocou grandes reações, que percebesse, nem na rua nem no ônibus. Incomodou-se, de passagem, com alguma aflição canina, mas podia ser casual... As pessoas, em especial, não se manifestaram. Umas gastaram olhares de soslaio, esse recurso quase literário que nem sempre se tem oportunidade de usar...
Ainda se adaptando, precisou altear a voz para o trocador, ao comprar passagem no ônibus. No meio do caminho, a senhora, inquieta no banco ao seu lado, não resistiu:
- Queimadura?...
- Pois é... Álcool...
Com uma expressão impenetrável, manteve-se calado até descer no ponto final. Para entrar no prédio do escritório de contabilidade, precisou de um crachá provisório. Não pode usar o seu (apesar do segurança quase ter tido certeza de reconhecer sua voz), o rosto não batia com a foto.
- Caspa... Um tratamento novo. Se não cobrir toda a cabeça, não faz nenhum efeito!
Aceitaram a identidade, nem foi preciso chamar o chefe da portaria.
Terceirizado, sua tarefa consistia em registrar, em livros contábeis, notas fiscais e comprovantes de despesas de empresas. Podia levar para casa, a grande vantagem... Melhor, ficava no escritório pouco mais que quarenta minutos, uma hora no máximo, o tempo de juntar o material e partir. Quando começavam a contar os problemas pessoais, as picuinhas internas, as fofocas rasteiras, quem comia quem ou não etc, estava exatamente na hora de partir... Definindo rápido as tarefas da semana, poupou-se de longas explicações.
Para o dono, mantendo o nível, justificou:
- Operação plástica. Para tirar umas rugas.
O grande inconveniente estava em carregar documentos, envelopes, pacotes atulhados de papéis, caixas de papelão de arquivo morto, grossos livros de capa dura, tudo, de alguma maneira, até sua casa. Momentos em que sonhava com os burros-sem-rabo de antigamente...
O jeito era pegar um táxi. O motorista, que, solícito, abriu-lhe a porta, nem distinguiu, a princípio, sua cabeça entre os pacotes que a custo equilibrava. Pelo meio da viagem, na habitual conferida pelo retrovisor, notou a face sem rosto, aquela fachada enfaixada, aquela cabeça que era uma máscara do nada, apenas os olhos atentos... Manteve toda discrição por, pelo menos, um minuto, talvez dois, até, enfim, irresistivelmente curioso, perguntar:
- Acidente?...
No que Murilo engatava resposta, o motorista, sinal aberto, engrenou primeira...
- Uma vez, um primo meu...
Sim, o começo foi estranho, mudanças de imagem são assim... Fora isto, para Murilo, a semana foi normal. Mesmo com o ganho dependendo de produtividade, não se apressou demais no trabalho. Queria ficar mais em casa, sentir melhor como se sentia...
Teve, por exemplo, dificuldades com a leitura. Segurou os óculos à frente dos olhos por uns tempos, até perceber que, graças ao aumento de espessura da cabeça, podia encaixá-los à altura das orelhas, bastavam pequenos sulcos com as unhas. Evitava movimentos bruscos, reações repentinas, olhadas de relance, não podia perdê-los de repente...
Circulou pouco. Necessariamente, foi ao supermercado. Até aproveitou as facilidades da fila, assumindo-se na categoria “deficiente físico”. Foi ao cinema sem maiores constrangimento, especialmente depois que o filme começava. Evitou entrar em bancos, preferiu caixas eletrônicos. Concluiu que não passaria na porta giratória. Algum alarme poderia soar e se preocupava com a reação dos seguranças, que evidentemente, não gostam de gente encapuzada...
No geral, recebeu não mais que uma pergunta cuidadosa ou outra. Respondia educadamente, como era do seu feitio:
- Idéia do barbeiro. Diz que é bom para amaciar a barba...
Sentindo-se seguro, bastante experimentado, foi, no sábado à tarde, visitar Marina.
Tavinho, seu filho de oito anos, atendeu à porta:
- Ei, mãe, vem ver!... É o Super-Múmia!...
Sentiu-se em casa!... Sentou na escadinha da varanda e atendeu, divertido, inventando histórias, à curiosidade dele e dos coleguinhas. Só não permitiu que tentassem desenrolar as bandagens... Marina, discreta, quase comovida, acompanhava a conversa do fundo da sala.
Antes de sair para jogar bola, Tavinho buscou o tênis, pediu que o ajudasse a calçar. Murilo ajeitou carinhosamente as ataduras de seus pés, pareciam recolocadas na véspera. Relativamente novas e já estavam sujas, devia ser difícil evitar que uma criança andasse descalça... Apertou bem o cadarço e os tênis se amoldaram às bandagens. Na perna direita, um pouco abaixo do joelho, ajeitou bem a ponta da atadura. Batendo com os pés no chão, Tavinho experimentou a firmeza do concerto. Deu-lhe um abraço e, desembestado, partiu atrás dos colegas.
Murilo e Marina, pela primeira vez, se entreolharam. Pelo olhar dela, receptivo, até envolvente, viu que alguma coisa tinha mudado... Também ele, agora, era outro, não mais inseguro ou confuso, ela veria...
A iniciativa da aproximação foi, claramente, dela:
- Você me parece bem...
Com a mão espalmada, afagou-lhe o aplainado rosto. Ele meneava a cabeça, saboreando. Ela já ampliava o gesto, envolvendo com braços e mãos a cabeça enfaixada de Murilo. Fixou os olhos profundamente, por longos segundos, nos olhos dele e, só então, o abraçou. Murilo retribuiu o carinho enlaçando-a pelo tórax, sentindo contra o peito o corpo firme, abaixo da textura áspera do tecido, escondido pelo vestido fechado de Marina.
Circulou com prazer as mãos pelas costas que o zíper, de cima a baixo, marcava. As faixas bem distribuídas não lhe deixavam, praticamente, sentir qualquer ressalto ou volume, mesmo na superposição de uma sobre a outra. Trazendo-a para mais perto, desceu as mãos até a cintura. Lá, também as bandagens estavam suavemente atadas, sabiam acompanhar a curva natural desse corpo ainda relativamente esbelto, um corpo que se sabia contido...
Não havia mais palavras. Ela, agora que ele era outro, outra vez agiu... Próximos os rostos, realmente muito próximos, sempre os olhos nos olhos, suas mãos interromperam o reconhecimento do volume e do revestimento da cabeça dele. Com o dedo mindinho, lentamente fez subir a faixa que lhe cobria a boca e, com sua própria boca, voltou a cobri-la. Ocupadas as mãos em explorações mútuas, beijaram-se longamente.
Murilo avançou, liberado de cuidados. Para abrir a roupa de Marina, desceu-lhe lentamente o fecho-éclair. Suas mãos, ultrapassado o limite do pano do vestido, passaram a circular por curvas mais fartas, a tocar diretamente as ataduras que cobriam nádegas e ventre. Num recuo estratégico, quase um golpe de esperteza, soltou-se dela por um átimo, o suficiente para que o vestido, já inútil, caísse. Tocou e apertou ligeiramente seus seios suavemente côncavos, achatados pelo tecido grosso. Ia trazê-la de novo ao peito, voltar a abraçá-la, mas Marina, mais uma vez, surpreendeu... Afastou-se levemente, baixou ligeiramente os olhos e pela mão, suavemente decidida, carregou-o para dentro.
Já no quarto, junto à cama, os olhos mantendo profundo contato, ela retirou de junto ao seio, com habilidade, a ponta de sua bandagem. Como uma oferenda, trouxe a mão de Murilo até a dela e passou-lhe a ponta. Ficou olhando, desprendida e prazenteira, enquanto ele, com certa solenidade e um pouco mais de falta de jeito, desvirginava a quase transparência dos desconhecidos primeiros centímetros de seu corpo...
Foi a vez de Murilo, perturbado mas profundamente enlevado, se colocar, do mesmo modo, na relação. Liberou a ponta da faixa de seu pescoço e passou-a à mão dela.
Marina, segura, decisão e leveza, recolocou-a, com um sorriso, no lugar, no pescoço de Murilo. Beijou, suave e exata, o ponto em que desapareceu sob as faixas de seu rosto.
Passou a ponta de sua bandagem para a mão dele e, desenrolando-se o necessário, deitou-se na cama.
Assim, como se faz uma oferta.
Aliviada, como se passasse às suas mãos o fio da vida, fechou os olhos.
Assim, como se faz uma entrega.
Conto do livro Rio de Amores
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