Viagem no Pão de Açúcar
A areia, Praia Vermelha... O mar, verde escuro... O céu, azul, claro... O vulto da montanha, marrom, brotando do mar contra o céu, presença dominante: o Pão de Açúcar!
Parece ter, o Pão de Açúcar, uma ânsia de se incorporar ao continente, à vida do povo do Rio de Janeiro, muito menos inerte que a sua. Fugir do mar e do céu, se jogar de peito aberto à terra firme... Cabeça dura, mas desprendido: deixou que lhe lançassem cabos, acessassem o cume. Talvez haja na massa de pedra uma rochosa mágoa...
Exatamente assim Aribishalah Adelabu se sentia, olhos foscos diante de um cartão-postal ao vivo, ele também um gigante, não tão de pedra... Tinha também um oceano às suas costas e a dificuldade de (se) fazer parte de um continente. Nem em sua família, nem em toda Nigéria, alguém (muito menos um lugar...) lhe parecera tão solidário quanto lhe parecia agora, à sua frente, aquela grande pedra, o Pão de Açúcar, apesar do volumoso silêncio...
No passeio dos funcionários da empresa, ainda antes da Rio Oil & Gas, a feira da indústria do petróleo no RioCentro, a visão do Pão de Açúcar, apesar do alarido internacional dos colegas, já lhe impactara. Chegara direto do aeroporto para o Hotel Intercontinental, em São Conrado, atravessando os maiores túneis de sua vida, embevecido com o desenho das montanhas, as matas e, ao fundo, o mar. Filho das planícies do delta do Níger, negro como o petróleo, técnico em perfuração de poços, o que o sustentava, mantinha-se na fé de seu povo. Enxergou nas montanhas a morada dos deuses, a presença dos orixás. E, no Pão de Açúcar, a postura de Exu, a fala daquele que trazia a mensagem...
Voltou passado um mês. Um mês pesado, embarcado nas plataformas de Campos ou enfurnado no escritório de Macaé. Conseguiu ir ao Pão de Açúcar no sábado, fim de tarde, início de outubro, sua única folga individual, algumas horas antes da partida do avião para Londres, a caminho de Lagos. Os colegas bebiam nos bares da Av. Atlântica, ele tinha um compromisso...
Portou-se com a solenidade possível. Vestiu o abadá branco com bordados ouro e verde, roupa tradicional da gente dos Adelabu, "a coroa que atravessa águas profundas", a família real do reino de Ketu, destituída e dispersa pelo poder do tráfico de escravos. Aribishalah também cumprira o mando, cruzara o oceano, como tantos de seu povo em séculos atrás. Nesses dias no Rio, várias vezes sentira a sensação de rever antigos primos... Ajeitou o barrete tradicional na cabeça e entrou, respeitoso, na fila do bondinho.
Pouco à frente, meio desconfiada, estava Hilde Amundsen, as mãos firmes na bolsa de lonita. O medo não era tão grande assim, mas, considerando a quantidade de avisos... As pessoas nas ruas do Rio não lhe pareciam ameaçadores: haveria armadilhas por trás dos sorrisos?...
Chegara escoltada por Sophia e Jorunn, as duas amigas de fé e de infância, após divertidíssima semana em Salvador. Veio solta, o sorriso dourado em todas as direções, muito especialmente as masculinas... Não recebera retorno à altura. Na verdade, seu sorriso generoso ia ficando cada vez mais desanimado. Em poucos dias, o olhar mais preocupado, menos espontâneo. Agora queria uma explicação, entender (e se entender com) essa tristeza encabulada das pessoas. Não porque estivesse, recém-formada psicóloga, à procura de uma missão. Apenas uma natural percepção do sofrimento alheio. Sentia no fundo dos sorrisos a muita aflição desse povo...
A relação com as amigas também mudando, de clima e de estado: a antiga euforia coletiva tornara-se um incômodo... Por isto voltava sozinha ao Pão de Açúcar, marco da ruptura com as velhas amizades, à procura de um prumo, algo que a reorientasse nessa viagem particular.
Ajeitou, com um enfeite de casca de coco, lembrança da Bahia, os cabelos escorridos. Dispensando o sutiã, vestiu uma blusa rosa, folgada. E sobre a calçola confortável de algodão, a mesma saia meio-rodada com que saiu da Noruega, dois meses atrás, agora um pouco menos azulada... Ela também mudara de cor, no corpo alto e magro. Da brancura transparente de Oslo para o leve tom rosado do Rio, depois do sol da Bahia...
Ingressos nas mãos, amontoam-se os passageiros nos torniquetes. "Mais uma confusão brasileira... Por que não mantém a fila?", pensou, europeia, Hilde. Educada, fechou no peito a impaciência. Para Aribishalah, movimento normal, lembranças da África. Manteve a postura respeitosa, nenhum esforço a mais por um lugar melhor.
Dessa mistura de interesses e iniciativas, dos que fazem questão de se colar às vidraças aos que precisam da garantia do balaustre central, dos que se dispõem a um gesto cavalheiresco aos que ganham na marra o melhor visual, desse rápido jogo de acotoveladas táticas e estratégicas, restaram Aribishalah e Hilde no miolo do bondinho, sem ponto de apoio, de costas um para o outro, apertados entre um grupo de japoneses excitadíssimos e uma família gaúcha muito extrovertida. Assim, se tocaram, bunda a bunda, suavemente...
Dentro do alarido, tentam, com gentileza, se explicar. "Sorry", ele diz, em inglês. "Unnskyld", responde ela, em norueguês... Sorriem, cada um por seu lado, um ligeiro olhar. No balanço do bondinho, no burburinho coletivo dos admiradores da paisagem, o bulir das nádegas e a graça da situação tornam-se, para eles, uma espécie de jogo. Um contraponto engraçado à melancolia... Em gestos e toques, se conhecem. E, por este outro lado, se entendem.
Expulsos do bondinho pela ânsia geral, meio empurrados, meio arrastados, desembarcam no morro da Urca. Tudo muito divertido!... Mais ainda, a tentativa de conversar. No inglês de cada um, bastante sotaque, pouca clareza. Apontar o horizonte é fácil. Lá, o Cristo no Corcovado, em frente o Morro da Viúva, ao lado a baía de Guanabara, mesmo sem nomes. As cabeças concordam, que engraçado!... Repetindo: apontar, balançar a cabeça, rir outra vez... O sol, acostumado a essas euforias, continua o caminho. Helicópteros e turistas, também, em revoada. Os dois continuam rindo da paisagem e da conversa, uma mais surpreendente que a outra...
Claro, para ver o pôr-do-sol, melhor subir ao Pão de Açúcar, visão mais alta, geral... Rápido, desviam dos operários que montam um palco e atravessam o restaurante e a loja de lembranças, nada de perder a próxima viagem do bondinho... No balanço, deslizam sobre a mata, entre o mar e a baía. Sobe, no mesmo tom, a alegria do entendimento. Estão, agora, cada vez menos espalhafatosos...
No Pão de Açúcar, o crepúsculo magnético. Afinal, um sossego... Mesmo sem se olhar, sentados lado a lado na borda do morro, é mais intensa a presença do outro do que a incontrolável variação das cores. Enquanto é amarelo, silêncio. No laranja, amistosos grunhidos, sorrisos tímidos de cada parte. Em pleno lilás, nada que tire a concentração, arrisca-se um olhar... No azul profundo, estrelas já salientes no céu, a aproximação pressentida, o abraço globalizante, o beijo transnacional... Sobre o Pão de Açúcar, a sensação de não caberem no mundo. Perdem a direção dos eventos, a geografia dos sentidos, a lógica dos fatos. Tratam de amar...
Nota-se no horizonte, para quem conhece os eflúvios do Rio, comemorações afins... Guarnecidos de luzes, aviões sobem do Santos Dumont, passeiam faróis sobre eles. Vênus reconhece que é hora, sobe no horizonte para espiar. Carros, animados, aceleram na curva do Aterro. Do outro lado da baía, a Fortaleza de Santa Cruz se incha, luminosa, de satisfação. Outra vez o cenário carioca inspira os atores. Mesmo os improvisados...
O retorno é quase o caminho de casa. A noite chega, as pessoas partem. Aribishalah e Hilde resolvem descer, corre um ventinho frio... No bondinho de volta, sobra bastante espaço, mas as mãos, os olhos, os corpos se procuram, se tocam. No Morro da Urca, na confusão de afagos e beijos, perdem-se dos demais. Talvez por acaso, talvez por amor, passam atrás da pista de dança, aos poucos se isolam no rumo da mata.
É quando mais se encontram... De frente, quase invisíveis no escuro, completamente presentes, se olham. E se veem, completos. Desce ao bolso o enfeite de casca de coco, abre-se aos seios a blusa cor-de-rosa. Penduram-se o barrete e colares a galhos de árvore. A saia azul sobe aos céus, a calçola desce à terra, como se fossem ofertas... O abadá, girando em elegante louvor, se converte em lençol, abraça o leito e se abre ao casal. Dá-se a iniciação, a liturgia amorosa. Em pé, com as mãos se firmando na pele, alternando apoios em raízes e pedras, concentram divindades da mata, do mar, da terra, do céu. Põem-se à mesa, sobre o abadá, e cada um entrega a hóstia, o sexo, ao outro...
Uma grossa e firme sonda negra encontra e penetra suavemente a úmida, túmida fenda de um branco solo. O membro, preto e rijo, energia em consistência de pedra, encontra aconchego na fenda, terra rosada, receptáculo que pulsa... E repete-se o ritual. Uma mente branca, límpida, aberta, se dispondo a uma questão volumosa, pesada, negra. Acolhendo, interagindo. Cada penetração a mais completa, cada acolhimento o mais amplo... A missa que se faz comunhão. O jorro branco no escuro, dele transborda o prazer que a inunda. Deleita-se do gozo, farto, fértil. E recolhe-se o desejo, entre pios de pássaros e zoada de micos. O mundo se recompõe, satisfeito.
Só não está concluído... O alarido dos funcionários chama os últimos turistas ao bondinho. A pequena multidão despreocupada se torna urgente. Revestidos das auras, mais que de roupas, Hilde e Aribishalah entram no torvelinho da descida. No bondinho, tão próximos, se desligam um do outro, concentrados em seus momentos. Mal sentem o reaceleramento do tempo, a reativação dos movimentos. Ainda estão mais sentimento que ação...
Na chegada, na escuridão da saída, a confusão... O grupo que desce se embola com a rapaziada que começa a subir para o show de rock, na concha acústica do Morro da Urca. Os motoristas de táxis disputam passageiros no tapa ("Ei, esse é meu! Go to Ipanema, mister?"). O nervosismo dos guias nos ônibus de turismo aumenta ("Japonês é tudo igual. Is anybody missing there?"). Chega mais gente para o show, outro grupo desce de outro bondinho...
Hilde supõe que Aribishalah não saiu e no que olha para trás é carregada de volta á estação pelos roqueiros em bando. Aribishalah acha que viu Hilde se adiantar na saída e avança resoluto para a praça. No meio do desencontro, buscando por ela, lembra-se da hora, liga o celular. Que, de imediato, toca... Seus colegas já fizeram sua mala, estão saindo do hotel para o aeroporto. Só lhe resta aceitar encarar táxi, não pode perder o avião, nem o emprego...
Hilde não quer saber do show, mas custa a descer. Quando chega à praça não encontra ninguém, exceto fanáticos roqueiros ("Yeeeah!") e espertos taxistas ("Ipanema, madame?").
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Parece que passaram, naquele sábado de outubro, pelos três níveis básicos (se é que há alguma certeza nisso...) de um relacionamento. No Pão de Açúcar, o enlevo, o encontro espiritual. No Morro da Urca, o desejo, o encontro carnal. Na Praia Vermelha, a realidade, o desencontro final...
Não sei, sei lá... Há outras versões para o fim da história, caso não se considere tamanho desencontro um suficiente final...
Dizem que Aribishalah, fiel ao nome (em ioruba, "aquele que acha um lugar para correr em segurança"), pediu a bênção aos orixás da família, desviou alguns equipamentos da companhia e fugiu batido para o Brasil. Que chegou a ter um emprego informal numa empresa terceirizada junto às produtoras de petróleo em Macaé, até que, experiente em terra e enjoado no mar, desistiu do trabalho. Parece que queria mesmo vir para o Rio... Que circulou pela cidade, sempre à procura de Hilde, de cujo sobrenome e nacionalidade não lembrava, o que lhe dificultou bastante a procura em consulados e hotéis. Que, falando inglês e bem dotado, trabalhou como segurança em alguns shows internacionais, no Rock in Rio e na Praça da Apoteose. Que, em serviço na concentração do desfile do Carnaval, ficou amigo do pessoal do Império Serrano. Que, identificado com as cores da escola, acabou bem recebido em Madureira, onde, dizem, tem dançado, com muito jeito as rodas de jongo da Serrinha. Ultimamente, teria conseguido vaga no camelódromo da rua Uruguaiana, numa barraquinha especializada na venda de jogos e programas de computador pirateados, onde seus conhecimentos linguísticos têm sido de muita utilidade. Que, quando pode, circula pela Praia Vermelha, mas nunca sobe no bondinho. Diz que a grana anda curta, que vai lá só para olhar o Pão de Açúcar...
Consta que Hilde circulou algumas semanas, desesperada, pelas ruas do Rio, vendo pelas costas de todo negão um possível Abdul..., Abda... ("afinal, como era mesmo o nome dele?!..."), mas não teria encontrado... Que foi praticamente arrastada de volta à sua fria Noruega por Sophia e Jorunn, quando, voltando de Foz do Iguaçu, a encontrarem semiesfarrapada e quase expulsa do hotel do Catete.
Parece que, um ano depois voltou, trazendo no colo um guri mulato e sapeca, seu pequeno Rio, nome relativamente difícil de explicar, mas que fazia o maior sucesso... Que depois de fazer alguns contatos prévios pela Internet com ONGs da área social, teria passado a trabalhar numa creche na favela da Rocinha. Que divide um apartamento em Copacabana com uma voluntária francesa dos Médicos sem Fronteira. E que, incansável, costuma ir aos domingos, sempre com o Rio apertado no peito, a Vigário Geral, participar de reuniões sobre aleitamento com mães da comunidade. Que aprende bem o português, mas, tímida, não vai a festas, nem sequer às populares, até porque tem um filho para cuidar... Quando pode circula pela Praia Vermelha, mas nunca sobe no bondinho. Diz que a grana anda curta, que vai lá só para olhar o Pão de Açúcar...
Uns dizem que eles teriam se encontrado por acaso em plena Av. Rio Branco, numa quinta-feira, às nove horas da manhã. Que quase deixaram de se reconhecer, mas, graças a um providencial sinal vermelho, viveram felizes para sempre. E que o Rio está maravilhoso...
Outros, que se encontraram, sim, iniciaram um relacionamento estável, mas que nada deu certo entre eles, seja por diferenças sócio-étnico-culturais, seja por falta de dinheiro mesmo... Que vivem, relativamente solteiros, cada um em sua comunidade. E que o Rio anda meio doentinho, muito agressivo...
Mas ninguém tem certeza... Pode ser que tenham ficado por lá, que tenham levado normalmente suas vidas, cada qual em seu canto do mundo. E que tenham, simplesmente, esquecido a estranha aventura. Que apenas o Pão de Açúcar, quem sabe?, ainda se lembre da história e continue lá esperando por eles...
Ou que tudo isto tenha sido, afinal, uma grande viagem...
E que, há quem o diga, o Rio não existe!
Conto do livro Rio de Amores
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