segunda-feira, 3 de maio de 2010

Capa

Foto da capa: © Guina Ramos, 2009 (da série NudaFoto, em Memória Fotográfica)

Preliminares

Por enquanto, cada um faça as suas...

Este livri é para os que gostam de sexo.
E, também, para os que praticam.

Apresentação

Já que sexo parece estar deixando de ser a transgressão-mor para tornar-se a panaceia universal, aqui vai minha contribuição (senão à sua prática) à sua fama.
Por dentro (e por cima, e por baixo) destes contos, há, ao menos, algumas considerações (feche os olhos e sinta...) sobre possíveis utilidades do sexo, entremeadas pelas devidas dúvidas, porque, afinal, mero aprendiz, estou
sempre treinando...

Em
Aquele Lugar, aquela história do sexo na mão e umas lembranças na cabeça... será bastante?
Em Bandagens, o sexo muito justo, ajustado mesmo, e mais que contado, contido... será relaxante?
Em Viagem no Pão de Açúcar, além do sexo entre viajantes, várias viajantes possibilidades... será transcendente?

E
para ler tudo isto, que comodidade!, nem é preciso tirar a roupa...

1 - Sexo Bastante?

Um certo lugar

(...) De volta à cama, mesmo aliviado, não conseguia dormir. Deitou e rolou de lá pra cá, acompanhando a inconsistência dos pensamentos. Sentia um torpor, noite abafada. Achava que ia dormir, mas se prestava atenção nisso o sono sumia... Lugares e pessoas, as mais variadas, compareceram. Percebendo sua confusão, iam embora. Precisava dormir... Ou de algum desafogo...
A coisa ficou mais sólida quando sentiu Juliana deitada a seu lado. De imediato apoiou uma das mãos na memória de suas ancas arredondadas. A outra já se ocupava com seu próprio estado de espírito... Aproximou-se de Juliana, a cama era estreita. As curvas reconstruídas pela memória foram se ampliando. Guilha, envolvido, aprofundava-se cada vez mais neste sonho...
Juliana tornava-se inteira, acessível... Beijou, saudoso, seus perfumosos cabelos. Cheiro nativo, profundo, terroso, sensual. Afundou o nariz nas madeixas suavemente agrestes. Macio, o travesseiro... Num movimento mais introspectivo, desceu aos seios. As juntas dos dedos da mão esquerda mergulhadas na boca. A mão direita, em contínuo mas controlado movimento...
Ah, os seios de Juliana!... Eram diferentes: cada um, um rumo. Diferenças sutis, só acessíveis aos mais observadores. Ou aos mais próximos, privilégio ocasional, muito apreciado por Guilherme. Mergulhou num repetido aconchego, bamboleando a cabeça de um a outro... O esquerdo, mais ousado. A auréola ríspida, apontando o desejo. O direito, mais macio, virando-se para o lado. Deixando fazer, como se não soubesse de nada...
Guilha sabia muito bem onde queria chegar... Circunavegou o entorno do umbigo. Ah, o umbigo de Juliana... Como medida, o nariz entre dois dedos. À sua volta, ondulações de uma barriga morena, os mínimos pelos eriçados, a pele ligeiramente áspera. Prostrou-se a seu ventre, como um sacerdote em entrega a uma longamente ansiada consagração...
Trouxe de volta perfumes e sabores de Juliana. Queria mais dos sabores... Sua memória abraçou outra vez o grande arco dos quadris. Solução necessária à vida ou decisão irrevogável do destino, ainda que pudesse parecer o mais deslavado tesão, todo o anfiteatro das ancas e dos seios atraiu seu olhar e sentimento. Ah, a barriguinha chocolate de Juliana...
Como um líquido inevitavelmente mergulha em vórtice para o bico de um funil, seu desejo o levou a um ponto único, um certo lugar, o lugar certo: a vulva fulva de Juliana...
Ah, a fulva vulva de Juliana!... Podia ter sido a luz filtrada pelo abajur de lona, quem sabe um shampoo de efeito fosforescente, talvez uma tintura especial que aplicou, Guilherme não tinha certeza, nem perguntou... Preferiu ter tido, naquela primeira vez, apenas a visão da vulva fulva de Juliana. Inebriado, não lhe veio, na hora, naquele dia-noite com Juliana, qualquer certeza sobre a cor de tão atraente (como dizer?, procurava o termo...) vagina, boceta, vulva...
Seria dourada?... Alourada?... Amarelada?... Trigueira?... Ruça?...
Achando a rima, encontrou a cor...
Fulva... A vulva fulva...
Deliciosa... A língua guardara nas mais profundas papilas seu sabor agridoce, vinho tinto de boa safra... Agora de volta, como um brinde. Na mente, o jogo de cores, o lusco-fusco do fim daquela tarde como que voltando para esta profunda noite.
E o jogo das palavras... Brincou com as palavras (“fulva, vulva, uva, luva, fula, lufa...”), saboreando na mão a fulva vulva de Juliana. Sentiu que lembrava da penetração... A entrada suave, o deslizar... A reentrada, as idas e vindas, as idas cada vez mais profundas... E agora, ali na cama turca, a mão se agitava, acelerava o movimento. Conseguiria, por si mesmo, a revivificação do prazer, o que tivera com Juliana?...
Foi este o momento da interferência... De alguma maneira, alguma forma (e forma de mulher!...) se intrometeu (se não houver excessiva ironia nisto...) entre ele e a figura quase real de Juliana. Da forma, negra, algo, surpreendentemente, luzia no escuro: os olhos...
Uns olhos... Mais negros que a escuridão que protegia seu prazer, estes olhos... Olhos de jabuticaba?... Algo se acelerou... O que foi, o quê?... O coração?... A mão?... Entre se entregar e estar atento, perdeu por um momento o controle: o prazer, ansioso, tomou-lhe à frente!...
Em suma: gozou...
E acordou!... Tratou de capturar em uma das mãos a lambança que a outra fazia, conter a trajetória da porra no espaço, o empolgado ganso imediatamente afogado em papel higiênico, no pedaço que previdentemente trouxera para a cama. Não podia molhar (sujar?...) o lençol. Muito menos a parede, tão perto. Pegaria mal...
Gozado, quem lhe veio à mente, agora, foi Gustavo...
Percebeu que acabara de viver uma cena que, se por acaso fosse escrita e publicada, alguém, mal intencionado, adoraria encontrar e ler, ao folhear, qualquer dia, um qualquer livro, em qualquer bancada de qualquer livraria...

Trecho do livro O Jogo do Resta Um - romance sócio-antropológico
quase histórico, pouco político, meio filosófico, muito econômico

2 - Sexo Relaxante?

Bandagens

Na segunda-feira de manhã, Murilo se enfaixou.
Deu a volta pela testa, firmou a ponta da atadura com um pedaço de esparadrapo. Diante do espelho, girando lentamente a atadura, cruzou o alto da cabeça e continuou. Quando já parecia vítima de lobotomia, desceu em direção aos olhos. Sem prejudicar a visão, cruzou a testa, em ligeiras diagonais, até cobrir cada sobrancelha. Continuou descendo, cobriu o nariz e as bochechas, fixou a abertura das narinas com esparadrapo. Na boca, pôs uma falsa cobertura, que podia ser arregaçada ao toque mínimo de um dedo. Apertou a faixa na área do pescoço, fez novo arremate de esparadrapo na base. Respirando fundo, revisou o trabalho. Com paciência, repetiu todo o processo, uma segunda e cuidadosa camada.
Analisou as tensões. A dele, até que razoável... A da bandagem, no ponto. Olhou firmemente o resultado no espelho. Tudo bem ajustado, superfície praticamente lisa, nada de pontas destoantes. Para quem não era enfermeiro, trabalho quase profissional... A atadura bege tinha a vantagem de parecer natural, cor-da-pele, para ele que era branquelo. Satisfeito, por um instante quase sorriu. Mas evitou forçar...
A ida ao centro da cidade confirmou a qualidade do trabalho. Precavido, escolheu, para evitar contrastes, uma roupa clara. A cabeça enfaixada (talvez pela falta de sangue ou de qualquer outra aparente substância gelatinosa ou gosmenta) não provocou grandes reações, que percebesse, nem na rua nem no ônibus. Incomodou-se, de passagem, com alguma aflição canina, mas podia ser casual... As pessoas, em especial, não se manifestaram. Umas gastaram olhares de soslaio, esse recurso quase literário que nem sempre se tem oportunidade de usar...
Ainda se adaptando, precisou altear a voz para o trocador, ao comprar passagem no ônibus. No meio do caminho, a senhora, inquieta no banco ao seu lado, não resistiu:
- Queimadura?...
- Pois é... Álcool...
Com uma expressão impenetrável, manteve-se calado até descer no ponto final. Para entrar no prédio do escritório de contabilidade, precisou de um crachá provisório. Não pode usar o seu (apesar do segurança quase ter tido certeza de reconhecer sua voz), o rosto não batia com a foto.
- Caspa... Um tratamento novo. Se não cobrir toda a cabeça, não faz nenhum efeito!
Aceitaram a identidade, nem foi preciso chamar o chefe da portaria.
Terceirizado, sua tarefa consistia em registrar, em livros contábeis, notas fiscais e comprovantes de despesas de empresas. Podia levar para casa, a grande vantagem... Melhor, ficava no escritório pouco mais que quarenta minutos, uma hora no máximo, o tempo de juntar o material e partir. Quando começavam a contar os problemas pessoais, as picuinhas internas, as fofocas rasteiras, quem comia quem ou não etc, estava exatamente na hora de partir... Definindo rápido as tarefas da semana, poupou-se de longas explicações.
Para o dono, mantendo o nível, justificou:
- Operação plástica. Para tirar umas rugas.
O grande inconveniente estava em carregar documentos, envelopes, pacotes atulhados de papéis, caixas de papelão de arquivo morto, grossos livros de capa dura, tudo, de alguma maneira, até sua casa. Momentos em que sonhava com os burros-sem-rabo de antigamente...
O jeito era pegar um táxi. O motorista, que, solícito, abriu-lhe a porta, nem distinguiu, a princípio, sua cabeça entre os pacotes que a custo equilibrava. Pelo meio da viagem, na habitual conferida pelo retrovisor, notou a face sem rosto, aquela fachada enfaixada, aquela cabeça que era uma máscara do nada, apenas os olhos atentos... Manteve toda discrição por, pelo menos, um minuto, talvez dois, até, enfim, irresistivelmente curioso, perguntar:
- Acidente?...
No que Murilo engatava resposta, o motorista, sinal aberto, engrenou primeira...
- Uma vez, um primo meu...
Sim, o começo foi estranho, mudanças de imagem são assim... Fora isto, para Murilo, a semana foi normal. Mesmo com o ganho dependendo de produtividade, não se apressou demais no trabalho. Queria ficar mais em casa, sentir melhor como se sentia...
Teve, por exemplo, dificuldades com a leitura. Segurou os óculos à frente dos olhos por uns tempos, até perceber que, graças ao aumento de espessura da cabeça, podia encaixá-los à altura das orelhas, bastavam pequenos sulcos com as unhas. Evitava movimentos bruscos, reações repentinas, olhadas de relance, não podia perdê-los de repente...
Circulou pouco. Necessariamente, foi ao supermercado. Até aproveitou as facilidades da fila, assumindo-se na categoria “deficiente físico”. Foi ao cinema sem maiores constrangimento, especialmente depois que o filme começava. Evitou entrar em bancos, preferiu caixas eletrônicos. Concluiu que não passaria na porta giratória. Algum alarme poderia soar e se preocupava com a reação dos seguranças, que evidentemente, não gostam de gente encapuzada...
No geral, recebeu não mais que uma pergunta cuidadosa ou outra. Respondia educadamente, como era do seu feitio:
- Idéia do barbeiro. Diz que é bom para amaciar a barba...
Sentindo-se seguro, bastante experimentado, foi, no sábado à tarde, visitar Marina.
Tavinho, seu filho de oito anos, atendeu à porta:
- Ei, mãe, vem ver!... É o Super-Múmia!...
Sentiu-se em casa!... Sentou na escadinha da varanda e atendeu, divertido, inventando histórias, à curiosidade dele e dos coleguinhas. Só não permitiu que tentassem desenrolar as bandagens... Marina, discreta, quase comovida, acompanhava a conversa do fundo da sala.
Antes de sair para jogar bola, Tavinho buscou o tênis, pediu que o ajudasse a calçar. Murilo ajeitou carinhosamente as ataduras de seus pés, pareciam recolocadas na véspera. Relativamente novas e já estavam sujas, devia ser difícil evitar que uma criança andasse descalça... Apertou bem o cadarço e os tênis se amoldaram às bandagens. Na perna direita, um pouco abaixo do joelho, ajeitou bem a ponta da atadura. Batendo com os pés no chão, Tavinho experimentou a firmeza do concerto. Deu-lhe um abraço e, desembestado, partiu atrás dos colegas.
Murilo e Marina, pela primeira vez, se entreolharam. Pelo olhar dela, receptivo, até envolvente, viu que alguma coisa tinha mudado... Também ele, agora, era outro, não mais inseguro ou confuso, ela veria...
A iniciativa da aproximação foi, claramente, dela:
- Você me parece bem...
Com a mão espalmada, afagou-lhe o aplainado rosto. Ele meneava a cabeça, saboreando. Ela já ampliava o gesto, envolvendo com braços e mãos a cabeça enfaixada de Murilo. Fixou os olhos profundamente, por longos segundos, nos olhos dele e, só então, o abraçou. Murilo retribuiu o carinho enlaçando-a pelo tórax, sentindo contra o peito o corpo firme, abaixo da textura áspera do tecido, escondido pelo vestido fechado de Marina.
Circulou com prazer as mãos pelas costas que o zíper, de cima a baixo, marcava. As faixas bem distribuídas não lhe deixavam, praticamente, sentir qualquer ressalto ou volume, mesmo na superposição de uma sobre a outra. Trazendo-a para mais perto, desceu as mãos até a cintura. Lá, também as bandagens estavam suavemente atadas, sabiam acompanhar a curva natural desse corpo ainda relativamente esbelto, um corpo que se sabia contido...
Não havia mais palavras. Ela, agora que ele era outro, outra vez agiu... Próximos os rostos, realmente muito próximos, sempre os olhos nos olhos, suas mãos interromperam o reconhecimento do volume e do revestimento da cabeça dele. Com o dedo mindinho, lentamente fez subir a faixa que lhe cobria a boca e, com sua própria boca, voltou a cobri-la. Ocupadas as mãos em explorações mútuas, beijaram-se longamente.
Murilo avançou, liberado de cuidados. Para abrir a roupa de Marina, desceu-lhe lentamente o fecho-éclair. Suas mãos, ultrapassado o limite do pano do vestido, passaram a circular por curvas mais fartas, a tocar diretamente as ataduras que cobriam nádegas e ventre. Num recuo estratégico, quase um golpe de esperteza, soltou-se dela por um átimo, o suficiente para que o vestido, já inútil, caísse. Tocou e apertou ligeiramente seus seios suavemente côncavos, achatados pelo tecido grosso. Ia trazê-la de novo ao peito, voltar a abraçá-la, mas Marina, mais uma vez, surpreendeu... Afastou-se levemente, baixou ligeiramente os olhos e pela mão, suavemente decidida, carregou-o para dentro.
Já no quarto, junto à cama, os olhos mantendo profundo contato, ela retirou de junto ao seio, com habilidade, a ponta de sua bandagem. Como uma oferenda, trouxe a mão de Murilo até a dela e passou-lhe a ponta. Ficou olhando, desprendida e prazenteira, enquanto ele, com certa solenidade e um pouco mais de falta de jeito, desvirginava a quase transparência dos desconhecidos primeiros centímetros de seu corpo...
Foi a vez de Murilo, perturbado mas profundamente enlevado, se colocar, do mesmo modo, na relação. Liberou a ponta da faixa de seu pescoço e passou-a à mão dela.
Marina, segura, decisão e leveza, recolocou-a, com um sorriso, no lugar, no pescoço de Murilo. Beijou, suave e exata, o ponto em que desapareceu sob as faixas de seu rosto.
Passou a ponta de sua bandagem para a mão dele e, desenrolando-se o necessário, deitou-se na cama.
Assim, como se faz uma oferta.
Aliviada, como se passasse às suas mãos o fio da vida, fechou os olhos.
Assim, como se faz uma entrega.

Conto do livro Rio de Amores

3 - Sexo Transcendente?


Viagem no Pão de Açúcar
A areia, Praia Vermelha... O mar, verde escuro... O céu, azul, claro... O vulto da montanha, marrom, brotando do mar contra o céu, presença dominante: o Pão de Açúcar!
Parece ter, o Pão de Açúcar, uma ânsia de se incorporar ao continente, à vida do povo do Rio de Janeiro, muito menos inerte que a sua. Fugir do mar e do céu, se jogar de peito aberto à terra firme... Cabeça dura, mas desprendido: deixou que lhe lançassem cabos, acessassem o cume. Talvez haja na massa de pedra uma rochosa mágoa...
Exatamente assim Aribishalah Adelabu se sentia, olhos foscos diante de um cartão-postal ao vivo, ele também um gigante, não tão de pedra... Tinha também um oceano às suas costas e a dificuldade de (se) fazer parte de um continente. Nem em sua família, nem em toda Nigéria, alguém (muito menos um lugar...) lhe parecera tão solidário quanto lhe parecia agora, à sua frente, aquela grande pedra, o Pão de Açúcar, apesar do volumoso silêncio...
No passeio dos funcionários da empresa, ainda antes da Rio Oil & Gas, a feira da indústria do petróleo no RioCentro, a visão do Pão de Açúcar, apesar do alarido internacional dos colegas, já lhe impactara. Chegara direto do aeroporto para o Hotel Intercontinental, em São Conrado, atravessando os maiores túneis de sua vida, embevecido com o desenho das montanhas, as matas e, ao fundo, o mar. Filho das planícies do delta do Níger, negro como o petróleo, técnico em perfuração de poços, o que o sustentava, mantinha-se na fé de seu povo. Enxergou nas montanhas a morada dos deuses, a presença dos orixás. E, no Pão de Açúcar, a postura de Exu, a fala daquele que trazia a mensagem...
Voltou passado um mês. Um mês pesado, embarcado nas plataformas de Campos ou enfurnado no escritório de Macaé. Conseguiu ir ao Pão de Açúcar no sábado, fim de tarde, início de outubro, sua única folga individual, algumas horas antes da partida do avião para Londres, a caminho de Lagos. Os colegas bebiam nos bares da Av. Atlântica, ele tinha um compromisso...
Portou-se com a solenidade possível. Vestiu o abadá branco com bordados ouro e verde, roupa tradicional da gente dos Adelabu, "a coroa que atravessa águas profundas", a família real do reino de Ketu, destituída e dispersa pelo poder do tráfico de escravos. Aribishalah também cumprira o mando, cruzara o oceano, como tantos de seu povo em séculos atrás. Nesses dias no Rio, várias vezes sentira a sensação de rever antigos primos... Ajeitou o barrete tradicional na cabeça e entrou, respeitoso, na fila do bondinho.
Pouco à frente, meio desconfiada, estava Hilde Amundsen, as mãos firmes na bolsa de lonita. O medo não era tão grande assim, mas, considerando a quantidade de avisos... As pessoas nas ruas do Rio não lhe pareciam ameaçadores: haveria armadilhas por trás dos sorrisos?...
Chegara escoltada por Sophia e Jorunn, as duas amigas de fé e de infância, após divertidíssima semana em Salvador. Veio solta, o sorriso dourado em todas as direções, muito especialmente as masculinas... Não recebera retorno à altura. Na verdade, seu sorriso generoso ia ficando cada vez mais desanimado. Em poucos dias, o olhar mais preocupado, menos espontâneo. Agora queria uma explicação, entender (e se entender com) essa tristeza encabulada das pessoas. Não porque estivesse, recém-formada psicóloga, à procura de uma missão. Apenas uma natural percepção do sofrimento alheio. Sentia no fundo dos sorrisos a muita aflição desse povo...
A relação com as amigas também mudando, de clima e de estado: a antiga euforia coletiva tornara-se um incômodo... Por isto voltava sozinha ao Pão de Açúcar, marco da ruptura com as velhas amizades, à procura de um prumo, algo que a reorientasse nessa viagem particular.
Ajeitou, com um enfeite de casca de coco, lembrança da Bahia, os cabelos escorridos. Dispensando o sutiã, vestiu uma blusa rosa, folgada. E sobre a calçola confortável de algodão, a mesma saia meio-rodada com que saiu da Noruega, dois meses atrás, agora um pouco menos azulada... Ela também mudara de cor, no corpo alto e magro. Da brancura transparente de Oslo para o leve tom rosado do Rio, depois do sol da Bahia...
Ingressos nas mãos, amontoam-se os passageiros nos torniquetes. "Mais uma confusão brasileira... Por que não mantém a fila?", pensou, europeia, Hilde. Educada, fechou no peito a impaciência. Para Aribishalah, movimento normal, lembranças da África. Manteve a postura respeitosa, nenhum esforço a mais por um lugar melhor.
Dessa mistura de interesses e iniciativas, dos que fazem questão de se colar às vidraças aos que precisam da garantia do balaustre central, dos que se dispõem a um gesto cavalheiresco aos que ganham na marra o melhor visual, desse rápido jogo de acotoveladas táticas e estratégicas, restaram Aribishalah e Hilde no miolo do bondinho, sem ponto de apoio, de costas um para o outro, apertados entre um grupo de japoneses excitadíssimos e uma família gaúcha muito extrovertida. Assim, se tocaram, bunda a bunda, suavemente...
Dentro do alarido, tentam, com gentileza, se explicar. "Sorry", ele diz, em inglês. "Unnskyld", responde ela, em norueguês... Sorriem, cada um por seu lado, um ligeiro olhar. No balanço do bondinho, no burburinho coletivo dos admiradores da paisagem, o bulir das nádegas e a graça da situação tornam-se, para eles, uma espécie de jogo. Um contraponto engraçado à melancolia... Em gestos e toques, se conhecem. E, por este outro lado, se entendem.
Expulsos do bondinho pela ânsia geral, meio empurrados, meio arrastados, desembarcam no morro da Urca. Tudo muito divertido!... Mais ainda, a tentativa de conversar. No inglês de cada um, bastante sotaque, pouca clareza. Apontar o horizonte é fácil. Lá, o Cristo no Corcovado, em frente o Morro da Viúva, ao lado a baía de Guanabara, mesmo sem nomes. As cabeças concordam, que engraçado!... Repetindo: apontar, balançar a cabeça, rir outra vez... O sol, acostumado a essas euforias, continua o caminho. Helicópteros e turistas, também, em revoada. Os dois continuam rindo da paisagem e da conversa, uma mais surpreendente que a outra...
Claro, para ver o pôr-do-sol, melhor subir ao Pão de Açúcar, visão mais alta, geral... Rápido, desviam dos operários que montam um palco e atravessam o restaurante e a loja de lembranças, nada de perder a próxima viagem do bondinho... No balanço, deslizam sobre a mata, entre o mar e a baía. Sobe, no mesmo tom, a alegria do entendimento. Estão, agora, cada vez menos espalhafatosos...
No Pão de Açúcar, o crepúsculo magnético. Afinal, um sossego... Mesmo sem se olhar, sentados lado a lado na borda do morro, é mais intensa a presença do outro do que a incontrolável variação das cores. Enquanto é amarelo, silêncio. No laranja, amistosos grunhidos, sorrisos tímidos de cada parte. Em pleno lilás, nada que tire a concentração, arrisca-se um olhar... No azul profundo, estrelas já salientes no céu, a aproximação pressentida, o abraço globalizante, o beijo transnacional... Sobre o Pão de Açúcar, a sensação de não caberem no mundo. Perdem a direção dos eventos, a geografia dos sentidos, a lógica dos fatos. Tratam de amar...
Nota-se no horizonte, para quem conhece os eflúvios do Rio, comemorações afins... Guarnecidos de luzes, aviões sobem do Santos Dumont, passeiam faróis sobre eles. Vênus reconhece que é hora, sobe no horizonte para espiar. Carros, animados, aceleram na curva do Aterro. Do outro lado da baía, a Fortaleza de Santa Cruz se incha, luminosa, de satisfação. Outra vez o cenário carioca inspira os atores. Mesmo os improvisados...
O retorno é quase o caminho de casa. A noite chega, as pessoas partem. Aribishalah e Hilde resolvem descer, corre um ventinho frio... No bondinho de volta, sobra bastante espaço, mas as mãos, os olhos, os corpos se procuram, se tocam. No Morro da Urca, na confusão de afagos e beijos, perdem-se dos demais. Talvez por acaso, talvez por amor, passam atrás da pista de dança, aos poucos se isolam no rumo da mata.
É quando mais se encontram... De frente, quase invisíveis no escuro, completamente presentes, se olham. E se veem, completos. Desce ao bolso o enfeite de casca de coco, abre-se aos seios a blusa cor-de-rosa. Penduram-se o barrete e colares a galhos de árvore. A saia azul sobe aos céus, a calçola desce à terra, como se fossem ofertas... O abadá, girando em elegante louvor, se converte em lençol, abraça o leito e se abre ao casal. Dá-se a iniciação, a liturgia amorosa. Em pé, com as mãos se firmando na pele, alternando apoios em raízes e pedras, concentram divindades da mata, do mar, da terra, do céu. Põem-se à mesa, sobre o abadá, e cada um entrega a hóstia, o sexo, ao outro...
Uma grossa e firme sonda negra encontra e penetra suavemente a úmida, túmida fenda de um branco solo. O membro, preto e rijo, energia em consistência de pedra, encontra aconchego na fenda, terra rosada, receptáculo que pulsa... E repete-se o ritual. Uma mente branca, límpida, aberta, se dispondo a uma questão volumosa, pesada, negra. Acolhendo, interagindo. Cada penetração a mais completa, cada acolhimento o mais amplo... A missa que se faz comunhão. O jorro branco no escuro, dele transborda o prazer que a inunda. Deleita-se do gozo, farto, fértil. E recolhe-se o desejo, entre pios de pássaros e zoada de micos. O mundo se recompõe, satisfeito.
Só não está concluído... O alarido dos funcionários chama os últimos turistas ao bondinho. A pequena multidão despreocupada se torna urgente. Revestidos das auras, mais que de roupas, Hilde e Aribishalah entram no torvelinho da descida. No bondinho, tão próximos, se desligam um do outro, concentrados em seus momentos. Mal sentem o reaceleramento do tempo, a reativação dos movimentos. Ainda estão mais sentimento que ação...
Na chegada, na escuridão da saída, a confusão... O grupo que desce se embola com a rapaziada que começa a subir para o show de rock, na concha acústica do Morro da Urca. Os motoristas de táxis disputam passageiros no tapa ("Ei, esse é meu! Go to Ipanema, mister?"). O nervosismo dos guias nos ônibus de turismo aumenta ("Japonês é tudo igual. Is anybody missing there?"). Chega mais gente para o show, outro grupo desce de outro bondinho...
Hilde supõe que Aribishalah não saiu e no que olha para trás é carregada de volta á estação pelos roqueiros em bando. Aribishalah acha que viu Hilde se adiantar na saída e avança resoluto para a praça. No meio do desencontro, buscando por ela, lembra-se da hora, liga o celular. Que, de imediato, toca... Seus colegas já fizeram sua mala, estão saindo do hotel para o aeroporto. Só lhe resta aceitar encarar táxi, não pode perder o avião, nem o emprego...
Hilde não quer saber do show, mas custa a descer. Quando chega à praça não encontra ninguém, exceto fanáticos roqueiros ("Yeeeah!") e espertos taxistas ("Ipanema, madame?").
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Parece que passaram, naquele sábado de outubro, pelos três níveis básicos (se é que há alguma certeza nisso...) de um relacionamento. No Pão de Açúcar, o enlevo, o encontro espiritual. No Morro da Urca, o desejo, o encontro carnal. Na Praia Vermelha, a realidade, o desencontro final...
Não sei, sei lá... Há outras versões para o fim da história, caso não se considere tamanho desencontro um suficiente final...
Dizem que Aribishalah, fiel ao nome (em ioruba, "aquele que acha um lugar para correr em segurança"), pediu a bênção aos orixás da família, desviou alguns equipamentos da companhia e fugiu batido para o Brasil. Que chegou a ter um emprego informal numa empresa terceirizada junto às produtoras de petróleo em Macaé, até que, experiente em terra e enjoado no mar, desistiu do trabalho. Parece que queria mesmo vir para o Rio... Que circulou pela cidade, sempre à procura de Hilde, de cujo sobrenome e nacionalidade não lembrava, o que lhe dificultou bastante a procura em consulados e hotéis. Que, falando inglês e bem dotado, trabalhou como segurança em alguns shows internacionais, no Rock in Rio e na Praça da Apoteose. Que, em serviço na concentração do desfile do Carnaval, ficou amigo do pessoal do Império Serrano. Que, identificado com as cores da escola, acabou bem recebido em Madureira, onde, dizem, tem dançado, com muito jeito as rodas de jongo da Serrinha. Ultimamente, teria conseguido vaga no camelódromo da rua Uruguaiana, numa barraquinha especializada na venda de jogos e programas de computador pirateados, onde seus conhecimentos linguísticos têm sido de muita utilidade. Que, quando pode, circula pela Praia Vermelha, mas nunca sobe no bondinho. Diz que a grana anda curta, que vai lá só para olhar o Pão de Açúcar...
Consta que Hilde circulou algumas semanas, desesperada, pelas ruas do Rio, vendo pelas costas de todo negão um possível Abdul..., Abda... ("afinal, como era mesmo o nome dele?!..."), mas não teria encontrado... Que foi praticamente arrastada de volta à sua fria Noruega por Sophia e Jorunn, quando, voltando de Foz do Iguaçu, a encontrarem semiesfarrapada e quase expulsa do hotel do Catete.
Parece que, um ano depois voltou, trazendo no colo um guri mulato e sapeca, seu pequeno Rio, nome relativamente difícil de explicar, mas que fazia o maior sucesso... Que depois de fazer alguns contatos prévios pela Internet com ONGs da área social, teria passado a trabalhar numa creche na favela da Rocinha. Que divide um apartamento em Copacabana com uma voluntária francesa dos Médicos sem Fronteira. E que, incansável, costuma ir aos domingos, sempre com o Rio apertado no peito, a Vigário Geral, participar de reuniões sobre aleitamento com mães da comunidade. Que aprende bem o português, mas, tímida, não vai a festas, nem sequer às populares, até porque tem um filho para cuidar... Quando pode circula pela Praia Vermelha, mas nunca sobe no bondinho. Diz que a grana anda curta, que vai lá só para olhar o Pão de Açúcar...
Uns dizem que eles teriam se encontrado por acaso em plena Av. Rio Branco, numa quinta-feira, às nove horas da manhã. Que quase deixaram de se reconhecer, mas, graças a um providencial sinal vermelho, viveram felizes para sempre. E que o Rio está maravilhoso...
Outros, que se encontraram, sim, iniciaram um relacionamento estável, mas que nada deu certo entre eles, seja por diferenças sócio-étnico-culturais, seja por falta de dinheiro mesmo... Que vivem, relativamente solteiros, cada um em sua comunidade. E que o Rio anda meio doentinho, muito agressivo...
Mas ninguém tem certeza... Pode ser que tenham ficado por lá, que tenham levado normalmente suas vidas, cada qual em seu canto do mundo. E que tenham, simplesmente, esquecido a estranha aventura. Que apenas o Pão de Açúcar, quem sabe?, ainda se lembre da história e continue lá esperando por eles...
Ou que tudo isto tenha sido, afinal, uma grande viagem...
E que, há quem o diga, o Rio não existe!

Conto do livro Rio de Amores

Contracapa

.
Sexo é vida! Sexo é dinheiro! Sexo é arte! Sexo é remédio!


Poucos produtos, ultimamente, têm sido tão valorizados
quanto o bom e velho (mas nem sempre seguro) sexo.
E, no entanto, o quanto se sofre por ele!
Ou por falta dele...

Neste Esses Sexos..., três histórias supostamente alentadoras,
casos em que,
apesar de tudo, o melhor, o que se salvou,
foi mesmo o sexo.

Pode ser que inspirem o leitor, caso o encontre por ai...

A série Livri... e alguma coisa mais

LIVRI
o livro livre na Internet
(clique com o lado direito do mouse e escolha "abrir nova janela")
.
1 > Pão de Açúcar Tempo Todo
o primeiro livri, fotos e textos;
2 > A Paixão Dança
um poema-romance, em fotos e textos;
3 > Santa Teresa dos Detalhes
um passeio premiado pelo bairro mais charmoso do Rio;
4 > Três Contos de Futebol
incluindo o finalista do Contos do Rio/Prosa & Verso/O Globo, 2006;
5 > dois contos meio amorosos
incluindo o 5o. lugar no
XVI Concurso Nacional de Contos José Cândido de Carvalho, 2006;
6 > A Ilha de Cabo Quente
com o conto vencedor do
Concurso Literário Teixeira e Souza (Cabo Frio-RJ, 2007).
7 > Personagem
a história do projeto de livro, fotos & textos.
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Outras publicações na Internet >
1 > Vida Lida
o que leio da vida e o que lêem de mim

2 > A série A História bem na Foto,
com fotos e depoimentos
de grandes fotojornalistas brasileiros.

3A Foto Histórica (e suas histórias) no Brasil
Projeto contemplado com o
Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia - 2010

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E as publicações em livro:

1 > Apoena e o Caos
apresentando o livro "Apoena – o homem que enxerga longe”

2 > Rio de Amores
livro de contos com dois bons e justos motivos:
o amor e o Rio de Janeiro

3 > O Jogo do Resta Um
Romance sócio-antropológico
quase histórico, pouco político,
meio filosófico, muito econômico

"2112 ...é o fim!"
contos crônicos de um futuro i(ni)maginável

>>> Avaliação livri

Este livri, de certa maneira, se filia a uma velha tradição, a das publicações independentes, simbolizada, para as últimas gerações, pelo já histórico mimeógrafo.
Sendo o meio, agora, meio eletrônico, meio artesanal, caso o caro (caríssimo!...) leitor tenha dado valor a este trabalho, basta fazer a gentileza de clicar alguns botões e deixar seus comentários. Mas, creia, preferiria encontrá-lo pessoalmente.